Você já imaginou como é viver em uma
cidade onde acordar todos os dias para ir ao trabalho significa enfrentar uma
batalha diária contra enchentes nas paragens de autocarro e táxis? Em Luanda,
ter carro não é luxo, é uma necessidade, e essa é a realidade de muitos que não
têm um meio de transporte próprio e dependem dos transportes públicos
deficientes existentes na nossa cidade. Hoje, quero compartilhar um pouco da
minha experiência de andar a pé em Luanda, explorando os desafios, a impotência
e a resiliência que isso envolve.
Eu comecei a conduzir em 2007, e foi uma das melhores experiências que tive. Adoro conduzir e amo velocidades, por isso ter carro para mim era uma maravilha. Sendo que eu na altura vivia no Zango e antes de ter carro próprio, andava de autocarro (isso mesmo, autocarro Tcul, mas essa história conto outro dia).Imaginem a minha felicidade quando tive o meu primeiro carro?
Pois bem, como contei, comecei a conduzir em 2007, e a minha qualidade de vida mudou muito porque já não precisava de sair de casa de madrugada (3:00 horas da manhã) para apanhar o autocarro com os meus bebés. Em 2008 mudei de casa, fui viver para uma casa própria que, por sorte, era mais próxima da cidade e do meu local de trabalho, o que melhorou mais ainda a nossa qualidade de vida. Podíamos sair à noite sem problemas, podíamos ir passear com os miúdos, e era tudo tranquilo. Como a nossa memória é curta, esquecemos facilmente dos momentos maus, e eu rapidamente me esqueci de como era não ter um carro próprio.
Porém, a vida às vezes nos prega
algumas partidas menos boas, e depois de 11 anos, o destino quis nos brindar
outra vez com a experiência de andar a pé. Na altura, tínhamos tido mais um
filho, a nossa caçula estava com 1 ano de idade.
No princípio, parecia que seria uma situação temporária e passageira, como das outras vezes em que tivemos que levar o carro para o concerto, e encarei isso como mais um desafio que a vida me apresentava. Estava tranquila que apesar de ser um tempo sem carro mais longo, passaria pela experiência com êxito.
Grande engano meu, a avaria no carro era muito séria, e não adiantava gastar as
nossas poupanças para reparar o carro. O melhor era vender. Mesmo assim, não me
abalei, pensei comigo: "Vendemos o carro e juntamos a esse dinheiro a
nossa poupança." Hahaha, não sabia eu que os preços dos carros eram bem
diferentes do que imaginava.
E o baque foi fundo e profundo,
quando nos apercebemos que, daquela vez, com o dinheiro que tínhamos, não
conseguiríamos trocar de carro. Então como pessoas optimistas e cheias de “fé”
que eramos (e somos) pensamos em alugar um carro numa rent-a-car, mas logo descobrimos
que na nossa condição financeira era deitar dinheiro em saco roto. E foi aí que
o chão desapareceu dos nossos pés, parecia que estávamos a entrar num buraco sem fundo,
pois tirou de nós qualquer ilusão de ter um carro próprio num horizonte
temporal próximo.
Dizer que doeu foi pouco, foi uma
agressão profunda à minha alma, à minha fé, a tudo que eu defendia e acreditava,
e a tudo que via em mim.
Percebi que era altura de colocar os
pés no chão, e pensar seriamente em mudar o meu estilo de viver, então resolvi
mudar o meu guarda-roupa. Substitui os meus saltos altos por sabrinas, os meus
vestidos foram trocados por roupas mais modestas, calças e blusas, para
facilitar a locomoção diária ao local de trabalho. A maquiagem elaborada foi
substituída por maquiagem básica, e os cabelos loiros tiveram que voltar a ser
castanhos!
É, minha gente, foi uma volta de 180
graus. Aprendi a "emagrecer" dentro do táxi, a ficar calada quando
era insultada e a me fingir de cega. Aprendi a correr para conseguir entrar no
táxi, aprendi a apertar a mala ao colo para não perder nada, aprendi a andar
sem joias, sem bijuterias, aprendi que o que importa é chegar a casa. Mas, o
que mais me custou foi ter que andar com a minha caçula, a minha princesinha, que
ainda não sabia de nada na vida, dentro de um táxi, que de tantas paragens
bruscas, vomitava e ficava toda suja. E eu era obrigada a limpar os carros, a
pedir mil e uma desculpas. Algumas vezes fomos postos fora do carro porque o
vômito da minha filha incomodava os outros passageiros.
Na minha arrogância e orgulho
ferido, nos primeiros meses desta dura realidade, levava a minha filha na
cadeira dela (ovinho), mas aí eu tinha que pagar 2 lugares, já que a cadeira
dela ocupava um lugar e, quando não atrapalhava para conseguir um carro, porque
às vezes só havia disponível um (1) lugar dentro do táxi. E como isso atrapalhava muito, então a
solução foi ela passar a viajar mesmo no colo, coisa que ela não estava acostumada e
sofria muito. Como chorava a minha princesinha.
E as saídas em família? Vocês nem
imaginam. Essas eram um martírio, encontrar um táxi com lugar para 5 pessoas
viajarem juntas de Cacuaco a Luanda era um bico de obra.
E ir a festas? Saídas à noite? Ir ao
cinema com os miúdos?
Isso passou a ser um luxo supérfluo,
e ficar em casa passou a ser o nosso passatempo preferido. Já tínhamos que
enfrentar a luta de conseguir um táxi para ir e voltar do trabalho de segunda a
sexta-feira. Depois de uma semana de empurra empurra e “Dona emagrece”, a nossa
casa era o paraíso na terra.
Mas a experiência ainda não estava
completa, faltava começar o tempo de chuva, que, como a maioria sabe em Luanda,
é uma catástrofe para quem vive fora da cidade.
O que fazer nos dias de chuva? Faltar
ao serviço porque está a chover?
Nada disso, esta não era uma opção,
tínhamos que ir trabalhar, sair com sombrinhas, sacos para os pés na água, 2
pares de calçados e pernas para que te quero, entrar no primeiro carro que
aparecesse e descer no local mais próximo do serviço. Na hora de voltar para
casa, era orar para Deus ter misericórdia de nós e nos enviar um táxi que nos
deixasse no nosso bairro. Era de ficar na paragem até às 21 horas à espera de
um carro que conseguíssemos subir, porque a enchente de necessitados era tanta
que conseguir subir era tipo um milagre, um motivo de agradecer a Deus de
joelhos, mesmo que a música estive alta tão alta que parecia rebentar os nossos
tímpanos.
Posso vos dizer que foi uma
experiência completa, com direito a tudo o que possam imaginar. Sair do serviço tarde, quase todos os dias depois das 20:00 horas, isso durante mais de 1 ano (isso mesmo, 12 meses), pois a
empresa não quer saber que não tenhas transporte, ou que vives onde o vento faz
a curva. Tens que continuar a apresentar a mesma qualidade de serviço, os
mesmos resultados e até superiores, afinal és pago para isso.
Tivemos também direito a assaltos,
os famosos de puxões de carteiras, ameaças para entregar o dinheiro,
intimidações por ter uma pele mais clara que a maioria e que não devia estar a
andar de táxi, porque os "negros precisam mais". E por último, não
podia faltar o assalto à mão armada, com direito a ter uma arma apontada na
cabeça. Sim, isso mesmo, sentir que a vida não é nada, que não és nada, que
amanhã é uma verdadeira incógnita, e tu podes não fazer parte do mundo dos
vivos!
Bem, depois dessa experiência, onde pareceu
que a minha alma saiu do corpo, e deu uma volta ao mundo em 3 minutos (sim,
esse foi o tempo do assalto que sofremos dentro de um táxi na Boavista), todo o
cansaço, tristeza, angústia, pena de mim se foi com aquele medo de perder a
vida. Parece que era o que eu precisava para deixar de viver com pena de mim
mesma, com dó da minha desgraça de já não ter carro próprio.
Naquele dia, cheguei a casa e
resolvi que era hora de mudar, e mudei. Passei a sair do serviço mais cedo, não
aceitava trabalhar depois das 18:00 horas, informei a minha chefia que já não
tinha como ficar até mais tarde. Passei a olhar o táxi como o meu meio de
transporte, sim, meu porque eu pagava, não era de graça. Deixei de aceitar
andar em carros velhos e estragados, passei a escolher os melhores lugares para
sentar, comecei a pedir aos taxistas que baixassem a música. Caso não o
fizessem, pedia para descer e apanhava outro. Perdi o medo de andar sozinha
dentro do táxi (antes eu só aceitava andar com o meu marido), se alguém
implicasse porque eu era "mulata" e estava a tirar o lugar de um
"negro", respondia que "se eu posso ser chamada de mulata, você
pode ser chamado de macaco, logo somos dois a tirar o lugar de duas
pessoas." As pessoas ficavam tão chocadas que não conseguiam revidar.
Afinal, se eu aceitava ser mulata, elas tinham que aceitar ser macacos. E como ninguém aceita ser chamado nomes e isso mexe com o ego, a maioria pedia desculpa por ter usado a
palavra "mulata"e os que queriam discutir eu mandava da uma curva e ingnorava, mas sempre tinha alguém dentro do táxi que me apoiava e nunca tive problemas, hahhaha.
Em vez de ir o caminho todo calada,
com a cara baixa, entrava na conversa com as zungueiras, com as empregadas
domésticas e falávamos de tudo, dos filhos, dos maridos, dos preços, dos chefes, do governo, de futebol, de política, de música, eu entrava em todas as conversas.
Passei a aproveitar a viagem tranquilamente. E para complementar, apresentei
aos meus filhos essa nova realidade, sim, a nossa realidade. Depois disso,
passamos a ir ao cinema de táxi, à praia, até a festas. Afinal, aquele era o
nosso meio de transporte, era o único que tínham
Aprendemos todos a andar de moto-táxi, e passou a ser
o nosso meio de transporte de luxo, o preferido e mais confortável, mesmo
depois de ter caído e quase partido uma perna, continua a ser o meu preferido,
hahahaha.
Só depois de termos aceito a nossa nova realidade, como
nossa é que as coisas estabilizaram, e conseguimos uma carrinha velhinha (tipo
Hiace) que mais pareceria uma sucata andante, porém, foi uma festa muito
grande. Para nós, era a própria limusine, a nossa "Limusine Branca" de 10
lugares. Usamos ela sem vergonha, na maior alegria, para ir a todo o lado. Às
vezes, tínhamos que parar na rua 2 ou 3 vezes para colocar água no radiador,
mas quem se importava com isso?
Não tinha ar-condicionado, não tinha portas
automáticas, não tinha vidros com elevador automático, mas quem se importava
com isso?
Nós amamos aquela carrinha. Era fantástico poder ir às
compras e comprar tudo de uma vez, sem haver necessidade de irmos a família
quase toda com sacolas e mochilas para poder conseguir levar as coisas, ou fazer
3 viagens para conseguirmos levar todas as compras da lista de necessidades. Se
já íamos à praia de táxi, imaginem como passaram a ser os nossos passeios com a
nossa “Limusine Branca”?
Nas férias, passamos a ir à praia quase todos os dias.
Incluímos as piscinas na nossa lista de saídas, e vocês não imaginam a cara dos
seguranças nos estacionamentos dos hotéis quando íamos à piscina. Era hilário,
eles olhavam para nós chocados.
Depois de termos a nossa “Limusine Branca”, nunca mais
faltamos a festa nenhuma, nem a estreias de filmes no cinema. No serviço, os
nossos colegas olhavam chocados para nós, como se fôssemos malucos, a andar tranquilos
e sorridentes na nossa “Limusine Branca”.
Os nossos filhos estavam tão felizes por já não
precisarem andar de táxi e por não andarem apertados, até a cadeirinha (ovinho)
da nossa caçula tinha um lugar dentro da nossa “Limusine Branca”, o carro tinha
tanto espaço, que passamos a levar os amigos dos nossos filhos nas nossas
saídas, e era uma discussão para escolherem o lugar para sentar.
Aquela carrinha branca foi como um maná nas nossas
vidas, que tudo nela era perfeita para nós, porque nos levava onde queríamos,
mesmo que tivéssemos que parar 3 vezes para colocar água no radiador.
Parece
história? É parece, mas é a minha história, ou seja, uma parte da minha
história. Outro dia conto outra história, da minha história, que tem muitos
capítulos…
Por Ema Rodé Gapis
Minha vénia amiga.👏👏👏👏👏👏
ResponderEliminarSou testemunha da tua realidade .
A minha história não defere muida da tua.
És uma guerreira 😘😘😘😘 abençoada.